segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Rita Lee põe Aracaju em mídia nacional

Rita Lee põe Aracaju em mídia nacional
Quero ressaltar algumas incoerências que percebo no discurso de algumas pessoas quando se referem ao “episódio inédito e bombástico” ocorrido no último sábado, no Verão Sergipe, protagonizado por Rita Lee x PM-SE, ao qual pude assistir de pertinho e, até me arriscaria em dizer que fui também um insignificante coadjuvante da novela praiana.
Antes de iniciar meus argumentos, quero ressaltar que não entrarei em discussão sobre a legalização, liberação ou até mesmo o uso “in – devido” da cannabis. Estou cansado de opinar a esse respeito e, se o fizesse mais uma vez, teria que entrelaçar uma séria de questionamentos pertinentes ao assunto que permeariam por incontáveis áreas do saber, o que pouco nos importa nesse momento e, além disso, tomaria parte do meu precioso tempo.
Não precisa ser fã de Rita Lee pra saber que a rainha do Rock sempre andou concomitante a “polêmicas”. Aliás, quem pode presenciar o ocorrido do último final de semana e enxergar tudo isso como estranho, no mínimo não conhece nada sobre a senhora Lee, nada sobre a PM ou vive em Marte. Se há um principal culpado nessa história toda, - se é que posso falar assim - esse alguém é quem a contratou. Aliás, quem a contratou mesmo?!(...) Por outro lado, Acreditar que a polícia no Brasil não é truculenta em muitas circunstâncias nas quais exigiriam da PM outra postura, é mesmo que encher o peito e afirmar veementemente que a educação e saúde públicas em nosso país são louváveis, ou até mesmo dizermos que bebida alcoólica não é droga.
A atitude da roqueira em seu show de despedida e a atitude violenta e desnecessária da PM com pessoas que, como disse a tia Rita, estavam apenas fumando um baseadinho, ao meu ver,  eram mais que esperadas. As palavras de ofensas proferidas pela cantora contra os policiais e, principalmente, a violência dos gambés contra alguns fãs da tia são injustificáveis, sobretudo a última ação. Como disse no início do texto, pude ver de perto tudo que aconteceu e, principalmente, por que aconteceu aquilo. Basta analisarmos os fatos de maneira racional e fria pra compreendermos as duas faces da moeda. Sinceramente, o que não pude compreender foi quando, por uma fração de segundos, não sei por que, acreditei estar na África e passava por trás de mim uma manada de búfalos que quase me lava ao chão. Infelizmente era só um sonho insano. O chão africano era na verdade a praia de Atalaia e o manada de búfalos era na verdade um grupo de policiais que, por onde passava, praticamente atropelava as pessoas -  entre elas mulheres e crianças. Mais uma vez, não vou defender Rita Lee quando, principalmente, usa de palavras chulas contra os policiais, inclusive os chamando de “filhos da puta”, todavia, analisar as coisas apenas por um ângulo não é inteligente,  o que quase toda a mídia sergipana ajudou a criar na cabecinha de alguns. Por que será?
 Rita Lee, inteligentemente, soube aproveitar o ensejo e fechar sua carreira nos palcos ao seu melhor estilo, assim como, a PM-SE em circunstâncias semelhantes costuma agir de forma extremamente repressora e truculenta.
Por isso, pra mim, a novela do último sábado na Atalaia Velha, protagonizada por Rita Lee e a PM-SE, fizeram me lembrar das novelas mexicanas: sempre com finais previsíveis e quase sempre interpretadas pelos mesmos atores.
É isso.
Obs.: Espero que não haja interpretações tendenciosas sobre o texto.

Rafael Dias

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

The Beatles

CONTO - A REPARTIÇÃO DOS PÃES - CLARICE LISPECTOR

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado,ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.


Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.
Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...
Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.


A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.


Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Autora: Clarice Lispector
Texto extraído do livro "Laços de família", Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1991.